ESPORTE, LAZER E SAÚDE

Terceiro texto dedicado à criatividade destaca fatos que inovaram o universo esportivo

Texto: Cristiano Hoppe Navarro /Arte: João Paulo Alencar / Edição: Hugo Costa


O gol de bicicleta, o saque “jornada nas estrelas” e a cesta após uma “ponte aérea” não nasceram nas primeiras disputas de suas respectivas modalidades. Pelo contrário, os pais do futebol, do vôlei e do basquete, muito provavelmente, não imaginavam que tais jogadas fossem integrar o jogo. Esses e outros lances de efeito são frutos de sacadas criativas, de mentes inventivas.


A capacidade de inovar no esporte é o tema do terceiro texto sobre criatividade na Série Esporte, Lazer e Saúde. Inspire-se com alguns dos maiores insights esportivos da história.


Confira também o primeiro e o segundo textos sobre criatividade.

 

1. O craque, Homo ludens

Eureka! “A criatividade, a capacidade de antevisão e de inventar o momento, antes do pensamento, é que diferencia o craque”, diz o tricampeão de futebol Tostão. A criatividade corporal, na qual atuam dançarinos, atores e desportistas, talvez seja a mais antiga das criatividades, uma vez que desde os caçadores pré-históricos habilidades de deslocamento e manipulação de ferramentas eram fundamentais. Outra característica é que sua idealização e execução são muitas vezes quase imediatas, parte improvisação, parte treino.


O jogo, atualmente incorporado à educação com a “gamificação” e atraindo multidões em competições de e-sports, é manifestação ancestral de nossa criatividade. Johan Huizinga, que nos denominou Homo ludens, garante: ele é tão antigo quanto o próprio homem. O sapiens, “homem que sabe”, é também ludens, “homem que joga” – e cria.

Leônidas, apelidado “Homem Borracha”, teria realizado a bicicleta primeiro em 1932. Foto: Alberto Sartini - Gazeta Press

2. Inovadores

No futebol, podemos citar como jogadas inovadoras de brasileiros o chute de bicicleta consagrado por Leônidas da Silva; a pedalada do holandês Law Adam, popularizada por Robinho; o elástico de Sérgio Echigo, aperfeiçoado por Rivellino; as fintas de Garrincha; as cobranças de falta por baixo da barreira de Rogério Ceni e Ronaldinho Gaúcho; e a “folha seca” de Didi, inventada como alternativa quando o meia estava lesionado para bater na bola do jeito tradicional. Incluam-se também os dois gols do argentino Maradona contra a Inglaterra em 1986: o gol de mão, e cinco minutos depois, a obra-prima de composição criativa eleita “gol do século”. Do primeiro se depreende: criatividade é transgredir barreiras e rebelar-se com as “regras”, e nem sempre é usada positivamente.


No basquete, lembramos a "ponte aérea" de Carioquinha, Marcel e Oscar e as enterradas do americano Darryl Dawkins. No vôlei, modalidades de saque como o “jornada nas estrelas” de Bernard Rajzman e o “viagem ao fundo do mar”, que se atribui primeiro à Jorge Bittencourt nos anos 1960. No rúgbi, as finalizações com os pés do inglês Jonathan “Jonny” Wilkinson. Nas artes marciais mistas (MMA), o estilo heterodoxo e abrangente do japonês Kazushi Sakuraba. No tênis, paralelas de backhand, deixadinhas e subidas à rede que Guga Kuerten usava, transformando ofensivamente o jogo de saibro. Para além de movimentos inéditos ou revolucionários como esses, em cada partida, luta ou prova desportiva, os atletas tomam milhares de pequenas decisões que, ainda que não sejam nunca antes vistas, são criativas em sua implementação e combinação.

 

3. O treino

O treino deve ser um espaço para desenvolver a criatividade. Segundo o pesquisador alemão Daniel Memmert, a experiência de longo prazo num esporte, de dez anos ou talvez 10 mil horas, beneficia a criatividade. Os melhores resultados estão na prática deliberada, com metas e uma constante busca por coisas novas que nos tirem da zona de conforto.

 

Nos anos 1980, segundo José Montanaro, ele, Renan Dal Zotto, William e outros atletas da seleção brasileira de vôlei testavam nos treinos a cortada da linha dos três metros, e foram aumentando a distância a cada sessão, até chegar na linha de saque a nove metros da rede. O treinador Bebeto de Freitas sugeriu que treinassem a cortada como saque, e assim se popularizou a “viagem ao fundo do mar”, ou saque viagem, uma forma de saque em suspensão que tornou-se padrão no vôlei. Renan comenta que, antes disso, já em 1979, havia experimentado sacar nesse estilo na final do campeonato gaúcho, inspirado em um saque de gancho que vira um jogador chinês fazer.


Renan saca viagem em jogo no Ginásio Ibirapuera em 1983. Foto: arquivo pessoal

4. Mudanças de paradigma

Por vezes, a criatividade tática surge nas pranchetas e mentes dos treinadores. O estabelecimento de um novo estilo de jogo de posse de bola e passes curtos no futebol, aprimorado pelo Barcelona de Xavi, Iniesta e do técnico Pep Guardiola, inspirado pelo carrossel holandês de 1974. A mudança na dinâmica do jogo de basquete, com a predominância dos arremessos de três pontos do Golden State Warriors de Stephen Curry. No altamente ensaiado futebol americano, contra a função exclusiva de lançar a bola da maioria dos quarterbacks, atletas como Lamar Jackson triunfam pela versatilidade, configurando uma “dupla ameaça”: lançamentos ou corridas para ganhar jardas.

 

Mudanças paradigmáticas também ocorrem nos esportes individuais. O japonês Jiro Nagasawa deu origem à novas provas na natação em 1954, após criar o moderno estilo borboleta. No automobilismo, o sucesso de Ayrton Senna nas corridas na chuva. Já no atletismo, uma das maiores revoluções nasceu quando um adolescente quis saltar olhando as estrelas. Era o Fosbury Flop, técnica criada por “Dick” Fosbury no salto em altura: corrida em curva e salto com as costas para o chão, com a qual tornou-se medalhista de ouro olímpico em 1968 e amplamente copiado de 1972 em diante.

Richard “Dick” Fosbury revoluciona o salto em altura nas Olimpíadas da Cidade do México em 1968. Foto: Bettman Archive

5. Extracampo

Um exemplo de criatividade na montagem da equipe vem do beisebol. A temporada 2002 do Oakland Athletics narrada no filme “O Homem que Mudou o Jogo”, quando o gerente Billy Beane deu início à uma revolução e a um novo domínio: o uso da análise estatística de desempenho. Desacreditado à princípio, acabou imitado por todas as equipes da Major League Baseball. Hoje, mais do que isso, o conceito foi levado para todos esportes coletivos profissionais.

 

Chave para avanços criativos, é a persistência que faz atingir o quarto estágio de aceitação de uma ideia, como definiu com humor o cientista J.B.S. Haldane: “(i) isso é um completo absurdo; (ii) este é um ponto de vista interessante, porém errôneo; (iii) isso é verdadeiro, mas nem um pouco importante; (iv) eu sempre disse isso.”

 

Daiane dos Santos tem movimentos batizados com o próprio nome. Foto: divulgação COB

6. Complexidade

A complexidade é uma característica dos esportes, com ênfase nos coletivos, com suas inúmeras variáveis. Disse o filósofo francês Edgar Morin: “um mundo absolutamente determinado, como também um mundo absolutamente aleatório, são pobres e mutilados; o primeiro é incapaz de evoluir e o segundo é incapaz de nascer”. O esporte está nessa zona intermediária, no limiar do caos, a ordem na desordem em que germina a criatividade. Assim como, na concepção do meteorologista americano Edward Lorenz, “o bater das asas de uma borboleta no Brasil pode iniciar um tornado no Texas”, uma minúscula mudança em um evento esportivo pode transformar completamente seu desfecho.

 

Modalidades a considerar diretamente a complexidade para seu resultado são a ginástica, a patinação no gelo, o nado sincronizado e os saltos ornamentais. Na ginástica artística feminina, os movimentos recebem notas de A a J de acordo com a dificuldade. Novos movimentos são incluídos na tabela quando criados, levando o nome de seus criadores, como o Dos Santos I, o duplo twist carpado, e o Dos Santos II, o duplo twist esticado, de Daiane dos Santos.

 

7. Diversificação desportiva

O primeiro medalhista de ouro olímpico em uma modalidade combinada foi Lampis de Esparta em 708 a.C., competindo no pentatlo (corrida, salto em altura e em distância, arremesso de disco e luta). O atleta considerado mais completo hoje compete no pentatlo moderno (natação, esgrima, hipismo, corrida e tiro esportivo). Outras modalidades combinadas olímpicas são o triatlo (natação, ciclismo e corrida) e o heptatlo (mulheres) e decatlo (homens), ambas reuniões de provas do atletismo com corridas, saltos e lançamentos.

 

Esses “combos esportivos” vão ao encontro do pilar da diversificação e do conceito de transferência tática de Daniel Memmert, bem como à noção do “forasteiro”, aquele que cruza as fronteiras de domínios. Resulta que quando um atleta experimenta vários esportes ele cria mais facilmente soluções criativas. Este autor que vos escreve criou um esporte que une vários em um só: misturando futebol, vôlei, basquete e jogo de pés e mãos, o futmanobol é um convite à criatividade.

 

Um movimento incoerente e surpreendente da máquina desestabilizou o enxadrista Kasparov. Foto: Reuters

8. Máquinas x humanos

Máquinas podem superar o ser humano? Quando a resposta é não, geralmente está associada à nossa criatividade polivalente, que softwares e robôs não possuem. Em 1997, o campeão mundial de xadrez Garry Kasparov foi derrotado em uma série de partidas pelo computador da IBM Deep Blue. Um bug derivado de um loop da máquina, que gerou a jogada contra-intuitiva nº 44 do primeiro jogo, foi interpretado pelo russo como uma inteligência superior acima da sua compreensão, o desestabilizando emocionalmente nos jogos seguintes. É o papel da confiança na auto-eficácia, como diz o psicólogo canadense Albert Bandura.

Em 2011, o Watson, outro supercomputador, venceu os dois humanos campeões do mundo no Jeopardy, um jogo de perguntas e respostas. Em 2016, o AlphaGo derrotou o campeão chinês no jogo de tabuleiro mais complexo existente, o Go. Alguns interpretam essas vitórias como a prova de que a criatividade nos dias de hoje é um esforço coletivo (como o das equipes que programaram os supercomputadores), em detrimento do individual (os campeões humanos). Até 2050, um time de robôs humanoides autônomos vencerá a equipe humana campeã do mundo no futebol, dizem os programadores da RoboCup, o maior torneio de futebol de robôs. Muito antes disso, segundo a consultoria Ernst & Young e estudo da Universidade de Oxford, os árbitros esportivos já terão sido substituídos pela tecnologia. 

 

9. Métodos de ensino

Desde os anos 1960, treinadores têm se debatido entre métodos sintético-analítico tecnicistas e métodos globais. Enquanto os primeiros concentram-se na repetição da técnica (“o modo de fazer”), os segundos usam os jogos, sejam condicionados ou formais, privilegiando portanto a tática (“as razões do fazer”). Assim, é claro que os métodos globais são mais interessantes para a criatividade.

 

No Teaching Games for Understanding, são usados pequenos jogos, adaptações com redução do espaço, dos equipamentos, do tempo de jogo ou do número de jogadores. A Abordagem da Criatividade Tática de Daniel Memmert também usa pequenos jogos, os “1-Dimension games”, bem como a diversificação e outros pilares como a prática, a motivação, o treinamento e o jogar deliberados. Neste último, não há orientações ou treinadores, como Ronaldinho Gaúcho quando na infância treinava seus dribles nos seus cachorros de estimação.

 

Michael Jordan e o flow: o jogador costumava mudar a jogada em pleno ar. Foto: reprodução IMDB

10. O flow: você está presente agora?

No documentário “Arremesso final”, identifica-se a principal qualidade que fez de Michael Jordan o maior jogador de basquete de todos os tempos: ele seria “quase que como um zen-budista”, sempre absolutamente no presente, no aqui e agora. Quando o ala-armador mudava a jogada em pleno ar, no meio de um salto em direção à cesta, ficava nítida a criatividade e o raciocínio veloz na tomada de decisão. Sua postura focada ainda contagiaria os demais expoentes do Chicago Bulls hexacampeão dos anos 1990, como Scottie Pippen, Dennis Rodman e Steve Kerr. Eram treinados pelo fleumático Phil Jackson, apelidado “Mestre Zen”, adepto do triângulo ofensivo e da filosofia de que “a força do lobo está na matilha”.

A presença de Jordan é o perfeito retrato (mais apropriado seria falar em fotogramas?) do estado de flow, conceito criado pelo psicólogo húngaro Mihaly Csikszentmihaly, autor do modelo sistêmico da criatividade. O flow é um estado de fluxo, de total imersão no que se está fazendo, com harmonia do corpo e da mente. E só quem está presente, pode assumir riscos. Criatividade também é tentativa e erro, incansável e persistente, arriscando-se, como na reflexão de MJ:

 

Errei mais de 9000 cestas e perdi quase 300 jogos. Em 26 diferentes finais de partidas fui encarregado de jogar a bola que venceria o jogo… e falhei. Eu tenho uma história repleta de falhas e fracassos em minha vida. E é exatamente por isso que sou um sucesso.

 

O último artigo desta tetralogia será publicado na próxima semana. O texto vai apresentar práticas que também podem ajudar a desenvolver a sua criatividade. Eureka!

 

Cristiano Hoppe Navarro é criativo por natureza. Graduado em educação física e jornalismo, desenvolve pesquisa com o tema Criatividade, especialmente na educação no mestrado da Faculdade de Educação (FE). É autor do livro Contos de Terráque@s e idealizador do futmanobol, esporte que mescla modalidades como futebol, basquete e vôlei. Trabalha como técnico desportivo na Diretoria de Esporte e Atividades Comunitárias (DEAC/DAC) desde 2016.