ESPORTE, SAÚDE E LAZER

Artigo de encerramento de série traz dicas simples para implementar na quarentena

Texto: Cristiano Hoppe Navarro / Arte: João Paulo Alencar / Edição: Hugo Costa


Se você chegou até a este ponto da jornada, é possível que já tenha lido os três textos anteriores sobre criatividade que integram a Série Esporte, Saúde e Lazer. O material, que busca trazer reflexões e instigar a capacidade criativa, abordou a perspectiva histórica, trouxe um apanhado de conceitos e mostrou o uso da criatividade no esporte. No texto de encerramento dessa viagem pelo universo criativo, uma provocação: estimule suas habilidades sem sair de casa. As dicas e os desafios estão lançados abaixo. Divirta-se com criatividade!

1. Movimente-se
Eureka! Como vimos no artigo anterior, esportes são um ótimo meio para desenvolver a tomada de decisão rápida e criativa. Mas, em tempos de restrição, especialmente às atividades coletivas, saiba que o simples ato de movimentar-se dentro de casa, seja caminhar ou correr na esteira, fazer polichinelos, flexões e abdominais, pular corda, levantar pesos ou dançar, já foi apontado por inúmeros estudos como um gatilho para a criatividade.


A habilidade de imaginar situações está ligada ao hipocampo, e a atividade física promove o nascimento de novas células nessa região do cérebro. Diminuir o estresse, aumentar a atenção e memória são outros efeitos indiretamente positivos para a criatividade. Já caminhadas externas que permitam à mente divagar também oferecem bônus criativos. Não à toa, ficcionistas como Ernest Hemingway (escrevia de pé) e Haruki Murakami (é maratonista) são associados a um estilo de vida ativo, que ajuda a criar.

 

Círculo de luz e trevas, na primeira fotografia de um buraco negro, a 55 milhões de anos-luz da Terra. Foto: Event Horizon - Telescope

2. Leia
Disse Einstein: “Conforme o círculo de luz se expande, também se expande a circunferência de escuridão em torno dele”. Quanto mais respostas e mais conhecimento, mais se avança ao desconhecido, e perguntas e oportunidades à criatividade surgem. A maneira mais acessível de obter “matéria-prima” em vários domínios para ampliar o círculo, com a qual se pode fazer combinações, arranjos e associações, é um traço comum em muitas pessoas criativas: a leitura onívora, de jornais, revistas, biografias, crônicas, ensaios, romances, ficção científica. Ler é visualizar através da imaginação, uma rota para a criatividade. “Livros quebram os grilhões do tempo”, dizia Carl Sagan.


Sete livros sobre criatividade:


Teorias da Criatividade, organizado por Mônica Souza Neves – Pereira e Denise de Souza Fleith (2020). Sistematizado pelas professoras da UnB, abarca seis importantes teorias sobre criatividade, de Ellis Torrance à recente psicologia cultural da criatividade.


O Mito da Criatividade – Desconstruindo Verdades e Mitos, de Fábio Zugman (2018). “Você acha que a criatividade é um presente das musas?” Este livro desmistifica esta ideia, propondo que ela “é um produto bem mais acessível do que muitos imaginam”.


The Runaway Species – How Human Creativity Remakes the World, de David Eagleman e Anthony Brandt (2017, em inglês). Um compositor e um neurocientista, com exemplos ilustrados da engenharia e das artes, investigam as raízes do pensamento criativo nas operações mentais de bending, blending e breaking.


Cinco Mentes para o Futuro, de Howard Gardner (2007). O autor das inteligências múltiplas dedica-se aqui à escrutinar as características das mentes disciplinada, sintética, respeitosa, ética e criadora.


O Ócio Criativo, de Domenico De Masi (2000). “O futuro pertence a quem souber libertar-se da ideia tradicional do trabalho como obrigação e for capaz de apostar numa mistura de atividades, onde o trabalho se confundirá com o tempo livre e o estudo”.


Ideias geniais: os principais teoremas, teorias, leis e princípios científicos de todos os tempos, de Surendra Verma (2014). Breves explicações sobre os conceitos e circunstâncias de criação das mais cruciais ideias da ciência, do Teorema de Pitágoras à Teoria de Tudo.


Leonardo da Vinci, de Walter Isaacson (2018). Best-seller sobre a vida de uma das personalidades mais criativas de todos os tempos. Há obras do mesmo biógrafo sobre Einstein, Benjamin Franklin e Steve Jobs.

 

3. Interaja
Conversar com pessoas diferentes é captar outros pontos de vista, uma fonte inesgotável para a criatividade. Amigos com quem você possa expressar suas ideias com sinceridade são valiosos. Foi o caso de J.R.R. Tolkien, de “O Senhor dos Anéis”, e C.S. Lewis, de “As Crônicas de Nárnia”, que eram bons amigos. Quem sabe ainda você possa arrumar um coletivo para debater suas ideias e transformá-las, em conjunto?


Com efeito, o brainstorming, realizado em pequenos grupos, é das técnicas mais usadas para obter soluções criativas. A “tempestade cerebral” consiste em anotar todas as ideias que vierem à mente, sem pré-julgamentos. Para o pesquisador Fábio Zugman, o brainstorming funciona melhor se cada participante explorar sozinho suas ideias, antes da sessão em grupo. Para a artista americana Julia Cameron, grupos de quatro pessoas são o formato ideal para partilhar criações.

 

4. Estimule suas inteligências múltiplas
Assistir filmes e séries ou escutar música, além da diversão, são formas de preparação, fornecendo “matéria-prima” para as ideias. O mesmo raciocínio da leitura é válido: diversifique, do drama à comédia, do improviso do jazz às recitações de Bob Dylan ou Renato Russo. Tudo pode ser fonte e se mistura em polinização cruzada. Você também pode se envolver em atividades que exijam sua criatividade de imediato. Desenhe, pinte ou esculpa, cante ou pratique um instrumento, treine sua oratória palestrando para alguém ou resolva enigmas matemáticos (abaixo). Uma charge ou tirinha pode reunir a criatividade espacial e linguística.

Desafio: ligar os nove pontos com apenas quatro linhas retas contínuas, sem “levantar a caneta” – solução está literalmente em “pensar fora da caixa”


Grave um curtíssima metragem, inteiramente em plano-sequência se você não quer se dedicar depois à edição. A “sétima arte” é chamada assim porque une as seis anteriores, e um projeto como esse pode desafiá-lo em criatividades múltiplas, na lógica de roteiro, locações, palavras, monólogos e diálogos, sons e música, fotografia, movimento corporal, autoconhecimento e relacionamentos. Um vídeo comentando sobre um assunto de que goste também pode ser uma plataforma para sua criatividade.


5. Viaje no espaço e no tempo
Viajar no espaço é uma ótima maneira de conhecer outras culturas e novas ideias, que você pode planejar para depois da quarentena – nesse momento, turismo virtual e o Google Earth ou Street View são o que há na área. Viajar no tempo é possível entrando em contato com a arte, cultura e pensamentos do pretérito (talvez um bate-papo com parentes mais velhos?) e com as visões e antecipações do futuro. Não é preciso ser um Einstein ou um Picasso para explorar o tempo e o espaço (como eles fizeram na relatividade e no cubismo).


Alguns exercícios para criatividade te ajudam nesse sentido:


a) Reinvenção. “Se eu vi mais longe, foi por estar sobre os ombros de gigantes”. Como na frase de Isaac Newton, todo ato criativo deriva dos anteriores. Você pode reinventar algo do passado do seu próprio jeito, inspirando-se numa obra artística, por exemplo, na qual vai inserir a sua marca.

Desenhos de crianças: como você reinventaria a representação da maçã? Imagem: Lindsay Esola

 

b) Hipótese. Por outro lado, você pode praticar situações hipotéticas ou futuristas de “e se?”. E se Hitler tivesse vencido a II Guerra? E se continuássemos trabalhando em home office? E se todos desenvolvêssemos nossa criatividade?

 

c) Associação. “Ligue os pontos” (ou termos) fazendo associações. Aqui o objetivo é, através de uma história, conectar dois ou mais conceitos. Como você vai do Criador ao criadouro?

 

d) Indagação. Questione-se. Desde o método socrático, as perguntas ajudam a sermos criativos. Você pode buscar por “perguntas de Fermi” na internet, questionamentos que o cientista Enrico Fermi se fazia baseados em suposições criativas, como “Quantos afinadores de piano há na cidade de Chicago?”. O Google também aplicava em suas entrevistas de emprego perguntas abertas de múltiplas respostas possíveis, como essa:

Você foi encolhido e está do tamanho de uma moeda. Além disso, sua massa foi proporcionalmente reduzida de forma a manter sua densidade original. Agora, você será jogado em um liquidificador de vidro vazio, e as lâminas dele começarão a girar em apenas 60 segundos. O que você faz?

 

6. Jogue
No último artigo, vimos que o Homo sapiens é Homo ludens. O jogo é uma ferramenta para a criatividade. Todos jogos são criativos, uma vez que, dentro das regras específicas, o participante é livre para jogar, seja um jogo eletrônico, de tabuleiro ou esportivo. Um jogo bastante conhecido que treina para a criatividade é o Imagem & Ação: chame seus amigos por videoconferência e crie representações de palavras ou expressões desenhando e encenando, e adivinhe as dos outros (há apps para jogar virtualmente também). 

Jogos, como Magic, nos exigem criar estratégias em curtos períodos de tempo. Foto: Wikimedia commons

E que tal inventar suas regras e criar seu próprio jogo, analógico ou digital? Foi o que fez Richard Garfield em 1993 com o sucesso Magic: the Gathering. O primeiro jogo de cartas colecionáveis, por possuir baralhos personalizados ao invés de fixos, elevou ao infinito as possibilidades.

 

7. Faça um teste ou siga um programa
Enquanto muitos sublinham o caráter subjetivo da criatividade, outros asseguram que é possível mensurá-la. Os Torrance Tests of Creative Thinking (TTCT, testes de Torrance para o pensamento criativo) foram os primeiros métodos avaliativos e continuam até hoje sendo os mais utilizados, com tarefas verbais e figurais. Mais tarde, foram projetados testes musicais e corporais. Se você fizer os testes, tenha em mente que, antes do que uma comparação, seu objetivo é fornecer subsídios para uma personalização da sua educação para a criatividade.


Outra possibilidade é aderir a algum programa, como “O caminho do artista” de Julia Cameron, livro com 4 milhões de cópias vendidas, que propõe exercícios de 12 semanas para uma redescoberta da criatividade. Uma das suas atividades são as páginas matinais: escrever três laudas diárias em livre fluxo de pensamento.

 

Criatividade. Creativity. Creatividad, Créativité. Kreativität. Творческий подход. 创造力. الإبداع. Foto: Google Images

8. Aprenda outras línguas
Bilinguismo e criatividade tem forte correlação. Falar duas ou mais línguas é quase como possuir dois ou mais modos de funcionamento cerebral. Flexibilidade e curiosidade são posturas dos bilíngues. E, quanto mais línguas forem dominadas, mais fácil fica aprender um novo idioma. Hoje, aplicativos, cursos online, podcasts e parceiros linguísticos pela internet permitem estudar e praticar em casa. Embora diferentes, assimilar a gramática de linguagens de programação, como Python, também pode te dar meios para criar em um mundo digitalizado.

Como trecho de atividade do curso de criatividade deste que vos escreve, sugere-se tentar criar alguns neologismos para palavras estrangeiras que não existem no português (na compilação da internet abaixo). Depois pode-se fazer o contrário: extrair palavras desconhecidas do dicionário e inventar significados para as mesmas (essa mecânica pode ser experimentada em grupo sob o nome de “jogo do dicionário” – o riso é garantido).


Quais palavras em português você criaria para traduzir esses termos estrangeiros? Kopfkino (alemão) – Uma sensação que todo mundo já sentiu. De repente, sem aviso nem lugar certo, tua mente vai embora e os pensamentos parecem começar a dirigir um filme próprio, desligado completamente da realidade. Iktsuarpok (esquimó) – Aquela sensação de que alguém está chegando e faz com que você vá verificar constantemente se há pessoas do lado de fora (também indicando um pouco de impaciência). Koi No Yokan (japonês) – A sensação ao encontrar alguém de que me apaixonar por ela ou ele é inevitável. Neko-neko (indonésio) – Todo mundo tem um amigo neko-neko! Aquele cara que tem uma ideia genial que só piora tudo! Dépaysement (francês) – Esse é o sentimento de não pertencer a um país ou uma cultura, de quando você se sente deslocado de sua origem ou um imigrante em qualquer lugar. Hygge (dinamarquês) – É a sensação de conforto e intimidade que traz estar sentado ao redor da lareira no inverno com os amigos mais próximos. Voorpret (holandês) – É a euforia que sentimos exatamente antes de fazer algo divertido. Ilunga (tshiluba, da República Democrática do Congo) – É a pessoa que está pronta para perdoar o abuso de outra pela primeira vez, tolerar a segunda, e jamais perdoar ou tolerar a terceira.

 

9. Enxergue do ponto de vista do outro

A abertura para o novo, a receptividade à culturas estrangeiras e a busca pela diversidade são traços da personalidade criativa. Permitir-se ver do ponto de vista alheio é uma forma de criatividade interpessoal. Criar realidades paralelas para o Outro, ao mesmo tempo que se treinam criatividades múltiplas nas ciências exatas, biológicas e humanas, é o mote da atividade proposta, parcialmente retirada do curso de criatividade do autor. As perguntas e informações que seguem são apenas provocações para que você possa sair da inércia e criar.


Em 1938, Orson Welles causou pânico em massa nos EUA ao encenar no rádio uma invasão marciana que soou verdadeira. O termo “Alien” tem raiz em “alienado” ou “afastado”, e pode designar tanto um estrangeiro, quanto um extraterrestre. A sugestão é criar, no maior detalhamento possível, em texto, voz e/ou desenho, um exoplaneta e a civilização inteligente que nele viva. Para isso, será preciso inventar desde o nível macro (o universo) até o micro (psicossocial). Comecemos pela Física: seus parâmetros físicos são iguais ou diferentes ao nosso universo? As quatro forças fundamentais, a entropia, a velocidade da luz? Astronomia: onde está o exoplaneta, em qual galáxia e a quantos anos-luz? Como é seu sistema estelar, como são o sol, os planetas e satélites, quais estão na zona “Cachinhos Dourados”? Geografia: qual a composição geológica e atmosférica? O planeta é terrestre ou gasoso? Como é sua gravidade? Há vulcões, gelo, desertos, florestas, metrópoles, continentes, ilhas, oceanos de água ou outro solvente? Qual o clima e temperatura? Química: a vida surgiu nos oceanos ou, talvez, foram extremófilos ou um meteoro? Seriam vidas de carbono, ou talvez silício ou arsênio? Biologia: são seres sencientes? A reprodução é assexuada ou sexuada? Como é o ciclo de vida, ou talvez sejam organismos imortais ou em uma “mente coletiva”? Qual a forma dos alienígenas, humanoides, uma nuvem talvez? Quais são seus sentidos, eles veem ultravioleta ou infravermelho? Dividem o planeta com outras formas de vida, fazem simbiose? Sociologia e psicologia: eles tem algo como o polegar para construir ferramentas? Tem linguagem, como chamam a si mesmos? Ou já estão bem mais avançados, controlando tudo pelo pensamento? Como eles pensam, como criam? Todos se conhecem ou há comunidades isoladas? Como é sua cultura, arte, o transporte, a obtenção de energia e demais tecnologias? Política e economia: existem leis, quem as faz? Democracia, anarquia, monarquia ou sofocracia, alguma delas define a forma de governo? Como fazem trocas de produtos, negociam? Quais os produtos valiosos? Se houver várias comunidades, estão em paz ou em guerra? História: alcançaram comunicação interestelar? Entraram em contato conosco ou vieram nos visitar? Como seria o primeiro contato, amistoso ou hostil, com eles interessados em nossos recursos? Ou ainda será que simplesmente não conseguiríamos entendê-los e nem eles a nós?

 

10. Descanse
Em meio à tudo isso, descanso é fundamental. Boas noites de sono potencializam a criatividade. É preciso cultivar o ócio criativo, tirando tempo livre para fazer o que gosta. Alegria e criatividade são irmãs siamesas.


No seu livro “Em Águas Profundas: criatividade e meditação”, o cineasta David Lynch faz apologia da meditação transcendental, técnica considerada de fácil aplicação. Com ela seria possível mergulhar na fonte das ideias: conhece-te a ti mesmo. De acordo com estudos, as técnicas de meditação de “monitoramento aberto” (receptivas à todos pensamentos e sensações) aumentam o desempenho criativo, ao contrário de técnicas meditativas de atenção focada em um pensamento específico. Uma parte do cérebro chamada Rede de Modo Padrão, que se ativa quando não há tarefas externas pedindo nosso alerta, parece estar relacionada ao “sonhar acordado” e à criatividade.

 

Em busca da fonte da criatividade: a meditação aberta é um mergulho em “águas profundas”?. Foto: Google Images

É preciso rever as fases criativas: acelerar muito pode até trazer algum ganho na preparação, mas o processamento inconsciente demanda tranquilidade. Mais não é necessariamente melhor. Segundo o psicólogo Mihaly Csikszentmihaly, pessoas criativas geralmente possuem, convivendo em harmonia, características opostas, como entusiasmo e quietude: conciliar intensidade e repouso, independente de relógios e agendas, é a maneira que aprenderam para ter sucesso criativo.

 

Para concluirmos nossa jornada, um último conceito: o mindset, que pode ser fixo ou progressivo. Ou você crê que está tudo pré-determinado e que se nasce ou não com talento; ou que existe potencial para crescer e evoluir. Cultive a segunda mentalidade: com esforço e coragem, você pode desenvolver sua criatividade e distribuir no mundo suas criações!

 

Obrigado pela companhia. Me envie um e-mail caso queira estender a discussão: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.. Desejo ao leitor: Eureka!

 

Cristiano Hoppe Navarro é criativo e busca despertar a criatividade no outro. Graduado em educação física e jornalismo, desenvolve pesquisa com o tema Criatividade, especialmente na educação no mestrado da Faculdade de Educação (FE). É autor do livro Contos de Terráque@s e idealizador do futmanobol, esporte que mescla modalidades como futebol, basquete e vôlei. Trabalha como técnico desportivo na Diretoria de Esporte e Atividades Comunitárias (DEAC/DAC) há cinco anos.